Livro Motivo de esperança, de Jane Goodall

Jane Goodall nasceu em Inglaterra a 3 de Abril de 1934 e desde cedo revelou gosto pela natureza e animais.
O seu sonho era viajar até África e tal aconteceu, inicialmente num período de férias e quando mais tarde foi convidada a estudar um grupo de primatas em Gombe, Tanzânia.

Jane não era uma cientista, aliás não tinha formação académica mas apenas um enorme fascínio pela vida animal. Louis Leakey, o mentor deste projecto audacioso reuniu patrocínios e consegui assim, depositando toda a esperança numa jovem inexperiente, dar a conhecer aspectos até então desconhecidos sobre a vida dos chimpanzés.
Jane formou-se em Cambridge na década de 60 e é hoje uma primatóloga de renome mundial, dando centenas de conferências um pouco por todo o mundo.

 

Excertos do seu livro "Motivo de esperança"

"Havia uma fêmea jovem que balouçava dentro da jaula, isolada de toda a vida exterior. Foi necessário o uso de uma lanterna para a conseguirmos visualizar. Ou se encontrava drogada ou mergulhada num estado de profundo desespero. Chamava-se Barbie, comunicaram-me então.
Ainda hoje me perturba a memória do olhar de Barbie, tal como o de tantos outros chimpanzés que conheci nesse dia: olhares mortiços e vazios, idênticos aos dos homens que perderam toda a esperança; idênticos também ao olhar das crianças refugiadas que conheci em África depois de terem perdido os pais e a casa onde habitavam.
Chocada e triste abandonei o piso subterrâneo onde se situava o laboratório.”

 

“Ajoelhei-me diante da jaula onde se encontrava Jojo e este estendeu a mão por entre as espessas barras que formavam uma barreira entre nós, até onde lhe foi possível. As ditas grades encontravam-se em toda a sua volta, e também em cima e em baixo.
Era naquela prisão que vivia há pelo menos dez anos. Dez anos de atroz aborrecimento intercalados por períodos de medo e dor.
Na jaula nada mais existia a não ser um pneu velho onde se podia sentar. Também não lhe era dada qualquer oportunidade de contactar com outros companheiros da sua espécie.
Olhei para os seus olhos e vi que neles não existia ódio, mas apenas uma espécie de gratidão pelo facto de eu ter decidido parar ali um pouco para falar com ele.
Muito delicadamente Jojo desdobrou as pregas que a fina luva de borracha formava na zona das unhas. Estendi a mão por entre as grades e depois, com um estalar de lábios, catou a penugem do meu pulso e antebraço, puxando a luva para baixo.
A mãe de Jojo fora morta em África. Recordaria ele ainda essa vida? Não era para ele a liberdade de escolher a forma como passar os dias, nem com quem; não lhe era permitido sentir o confortável solo fofo da floresta, nem a suavidade do ninho macio, lá no cimo das árvores.
Jojo há muito tempo perdera o seu mundo. Agora estava inserido num mundo arquitectado por nós, um mundo duro, frio e cinzento, feito de metal e cimento, sem o mínimo encanto.
Um mundo sem janelas, sem nada para contemplar, nada com que brincar. Sem poder sentir o toque dos dedos que tão agilmente se dedicam à arte de catar, sem nenhum amigo para abraçar e beijar no alegre cumprimento matinal. Jojo não cometera nenhum crime mas no entanto estavacondenado à prisão perpétua. Com toda a delicadeza, Jojo estendeu novamente a mão através das barras de metal e tocou o meu rosto, onde as lágrimas escorriam até à máscara. Levou depois o dedo molhado até ao seu nariz, lançou-me um olhar rápido e continuou a catar o meu pulso.”

 

“Quem quer que lute por melhorar as condições de vida dos animais sujeita-se a ser alvo de crítica por parte de todos aqueles que acreditam ser essa luta descabida num mundo onde a humanidade ainda é tão sofredora.Era essa a opinião de uma mulher que conheci numa digressão pela América.
"A filha desta senhora sofre de um grave problema de coração" fui então informada. "Ela está viva devido aos testes de laboratório com cães". Suspeitei de imediato que surgiria alguma altercação entre nós e na verdade, alguns minutos depois já a referida senhora se havia aproximado para me atacar com unhas e dentes. Se a minha vontade fosse colocada em prática a sua filha já teria perdido a vida. Gente como eu provocava-lha uma imensa revolta. Fui alvo de um cerrado ataque verbal e quando por fim consegui articular algumas palavras contei-lhe que a minha mãe tinha no coração uma válvula de porco.
Pertencia a um animal que depois de morto se destinava normalmente ao consumo, mas no entanto todo o procedimento fora desenvolvido com porcos de laboratório. "Acontece que eu gosto muito de porcos" afirmei.
"São quase tão inteligentes quanto os cães, sinto uma profunda gratidão para com esse porco que salvou a vida da minha mãe, e para com todos os outros animais que tornaram possível essa operação. É esse o motivo que me leva a lutar para melhorar as condições em que os porcos são mantidos nos laboratórios e nas quintas. Não se sente grata pelos cães que salvaram a vida da sua filha? Não gostaria de auxiliar aqueles que se dedicam a procurar alternativas para que no futuro não seja necessário utilizar mais nenhuns cães... ou porcos?"
A mulher ficou algum tempo em silêncio e de olhar fixo em mim e depois, por fim, respondeu "Nunca ninguém antes me descreveu a situação dessa forma."”

 

“Amber tinha cinco anos quando veio ao meu encontro, acompanhada pela mãe, no final de uma conferência celebrada em Tampa, Florida. Numa mão trazia um pequeno boneco Snoopy e na outra um saco de plástico com algumas moedas. Nessa mesma manhã, a mãe descobriu que Amber andava há já algum tempo a juntar o dinheiro que lhe ofereciam. Em tempos assistira na televisão a um documentário no qual Flint morre de desgosto depois de ter perdido a mãe, Flo (chimpanzés do parque de Gombe estudados por Jane)
Amber podia compreender muito bem esse desgosto- o seu irmão falecera no ano anterior. Esse irmão gostava muito de observar os chimpanzés no jardim zoológico e Amber sabia que eu me dedicava ao tratamento de chimpanzés órfãos. Por isso, decidira gurdar a sua semanada, semana após semana, até conseguir juntar o suficiente para comprar o brinquedo – será que eu me importaria de lhe fazer o favor de o entregar a um dos chimpanzés? Talvez o ajudasse a sentir-se menos só durante a noite; e com as moedas que tinham sobrado poderia eu encarregar-me de lhe comprar um cacho de bananas?
Amber constitui uma magnífica ilustração de um dos meus motivos de esperança: todos esses maravilhosos e dedicados indivíduos que vou conhecendo pelo mundo fora. Existem alguns que se empenham de tal forma por alcançar objectivos impossíveis que, devido á sua persistência acabam por derrubar obstáculos aparentemente indestrutíveis, trilhando um caminho que permite aos demais seguir.”

 

“Jon Stocking, por exemplo, ao aceitar um trabalho num barco de pesca de atum ficou horrorizado ao verificar que os golfinhos ficavam presos nas redes e se afogavam em seguida. Um dia, ao ouvir os gritos de aflição de um golfinho bebé, os olhos da mãe encontraram os seus, e esse olhar, um verdadeiro pedido de socorro, fê-lo saltar para as águas infestadas de enormes atuns que se agitavam nas redes, além de tubarões e golfinhos. Jon, também ele aterrorizado, tomou o jovem golfinho nos braços, sentiu-o acalmar e atirou-o depois para a água, por cima da rede; conseguiu também libertar a mãe golfinho, e depois, com a ajuda de uma faca, cortou a rede e libertou todos os outros peixes. É claro que perdeu o emprego. Mas ao chegar a casa nesse dia, Jon meditou sobre a situação dos golfinhos e de todos os animais que se encontram à beira da extinção. O que poderia ele fazer para ajudar? Não possuía qualquer diploma, nem era rico, mas desejava muito poder contribuir de alguma forma para essa causa. E conseguiu.
Agora dedica-se ao fabrico de tabletes de chocolate da melhor qualidade. Cada uma dessas tabletes apresenta na capa a imagem de um animal e 11,7% dos lucros-isentos de impostos- destina-se a uma organização que luta pela sobrevivência dessas espécies animais.”


“Rick Swope é um americano que de visita a um jardim zoológico salvou um macho chimpanzé adulto de se afogar na vala da sua cerca. Fê-lo, contrariando as interdições directas do tratador e ignorando as ameaças dos outros machos adultos do grupo. Quando lhe perguntaram o que o levara a prosseguir e a arriscar a própria vida, respondeu: “olhei para os seus olhos; o olhar era idêntico ao de um homem e a mensagem que enviava era: será que ninguém vai ajudar-me?”

 

Jane Goodall tornou-se vegetariana na idade adulta, ao ler o livro “Libertação Animal” de Peter Singer, o qual descreve com grande pormenor a criação intensiva de animais destinados à alimentação. Como refere o autor neste livro, o vegetarianismo é uma forma de boicote. É certo que não é possível fazer regressar à vida o nosso bife, mas o objectivo do boicote não é alterar o passado, mas impedir a continuação das condições a que objectamos.

Em 1977 Jane Goodall criou um Instituto com o seu nome, que visa defender os grandes primatas, através de campanhas de sensibilização e iniciativas no âmbito da conservação da natureza e habitats. Criou ainda o programa “Roots and Shoots”, destinado a crianças e jovens, Esta rede global actua nas áreas do ambiente, comunidade, e protecção animal. A mensagem e objectivo é simples: cada um de nós importa, a cada um de nós cabe um papel a desempenhar e cada um de nós pode ser o bastante para alterar uma situação. Aquilo que fazem depende do lugar onde vivem e do género de problemas locais. Na Tanzânia é natural que plantem árvores, tentem melhorar as condições do gado à venda nos mercados e visitem crianças hospitalizadas. Na sul do centro de Los Angeles o trabalho será de outro género: recolha de lixo, prestar auxílio a um vizinho e assim por diante. Na verdade, esta rede está já presente em mais de 100 países!

“Uma das minhas histórias preferidas sucedeu com um taxista de Londres, que numa manhã me conduziu até ao aeroporto. Sentia-me fatigada e tinha pela frente duas semanas de conferências, mas de alguma forma o taxista sabia que eu trabalhava com chimpanzés e pronunciou então uma acesa tirada contra aqueles que “gastavam” dinheiro com os animais, especialmente a sua irmã. Esta trabalhava numa associação local de protecção aos animais. Havia tanto sofrimento humano, tantas crianças violentadas. Revoltava-o muito ter uma irmã que se preocupava tanto com os animais. Havia demasiados programas de televisão sobre animais; nessas ocasiões ele mudava sempre de canal. Não estava com muita disposição para ouvir tudo aquilo. Estava prestes a reclinar a cabeça e a fechar os olhos, quando me dei conta de que era exactamente aquele o tipo de personalidade, irritante e desconcertante, que com tanta urgência precisava ser despertada. Aquele taxista representava centenas de pessoas que pensavam da mesma forma. Como tal, fui todo o percurso a conversar com o motorista. Comecei por relatar algumas das histórias dos chimpanzés. Contei-lhe como podem aprender linguagem gestual, como sentiam emoções, como se preocupavam com os seus semelhantes. Relatei episódios em que cães e outros animais haviam salvo a vida dos donos. Havendo já tantos indivíduos empenhados na resolução dos problemas humanos, decerto não seria prejudicial se alguns se preocupassem também com os animais. Mas nenhum argumento pareceu adiantar. A preocupação com os animais, insistia teimosamente, era pura perda de tempo. “Seja como for, tenha uma boa estada na América”, desejou antes de eu sair.
Senti que seria correcto dar ao taxista uma gratificação, independentemente das suas opiniões mas não trazia comigo a quantia mais apropriada e ele não tinha troco. Como tal, pedi-lhe que depois de retirar algum dinheiro para si, entregasse o restante à irmã, para ajudar o seu trabalho a favor dos animais. Nunca acreditei que esse homem fosse seguir as minhas instruções, mas o meu sentido de humor falou mais alto.
De regresso a Inglaterra após aquela digressão, uma das cartas que me aguardava era da irmã do taxista.
“O meu irmão entregou-me o seu donativo” escreveu ela nessa carta. “Foi muito simpático da sua parte. Mas o mais espantoso de tudo é a mudança que se operou no meu irmão. O que foi que a senhora conversou com ele?” Afinal aquela exaustiva hora trouxera os seus frutos.”

Quando Jane tinha pouco mais de um ano, o seu pai ofereceu-lhe Jubilee, um chimpanzé de peluche. Tratava-se de um objecto de merchandising para comemorar o nascimento da primeira cria de chimpanzé no zoo de Londres. Jane ainda guarda o brinquedo na sua casa de Bornemouth, local onde passou a infância e adolescência.

 

(Texto e tradução dos excertos de Vera Martins)



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Inserido em: 2010-12-18 Última actualização: 2010-12-18

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