Desde o início da década de 90 que em Portugal se procura uma solução para os resíduos industriais perigosos, sem resultado. Pode parecer aos menos informados que este problema é inédito e que se parece com a procura de uma vacina para uma grave doença conhecida, mas ainda sem cura. Para uma minoria, conhecedora do assunto, este problema já há muito foi resolvido nos países desenvolvidos pela aplicação das técnicas apropriadas que, dia a dia, se vêm modernizando com o avanço das ciências apropriadas.
Só que, no nosso país, onde todos sabem de tudo, há enormes dificuldades para serem ouvidos aqueles que, na verdade, conhecem sobre este assunto. Permitam-me que transcreva um extracto do artigo «Opiniões inconsequentes», de Jorge Lacão, em “O Diabo” de 06/02/2001: «É muito fácil cada um de nós e todos nós termos opinião acerca de todas as coisas. Mas é mais difícil estudá-las, de forma ponderada, para depois ter um ponto de vista habilitado. E portanto, como cada um se acha no direito de emitir imediatamente uma opinião, corre-se muitas vezes o risco de essas opiniões serem inconsequentes, de não serem sustentadas no estudo das coisas. Isto, para qualquer cidadão, é legítimo o direito ao erro. Para certas pessoas, especialmente qualificadas, em posição institucional de grande responsabilidade, é pelo menos muito triste que não ponderem aquilo que está em causa, antes de se pronunciarem publicamente.»
Como técnico e cidadão interessado, tenho seguido o problema na esperança de que as entidades responsáveis pela tomada das soluções escolham aquela que seja mais moderna e apropriada ao problema, para bem do ambiente e das populações. Durante estes últimos anos tenho reunido diversa documentação técnica e de informação geral, divulgada pelas variadas vias de informação: jornais, TV, rádio. Desse arquivo irei retirar e comentar algumas das que me parecem mais indicadas ao esclarecimento dos menos informados.
Assim começamos por uma notícia de 22/01/2002 no JN:
Título: Sócrates critica líder do PSD.
O ministro do Ambiente, José Sócrates, acusou Durão Barroso de ter feito declarações de «uma total irresponsabilidade» sobre a co-incineração ao prometer que um Governo social-democrata abandonará o processo. «Acho isso irresponsável, porque não contribui para melhorar a política de ambiente e atrasa o país», respondeu José Sócrates aos jornalistas em Lamego. O governante criticou o PSD por não propor «nada ao país a não ser desfazer o trabalho que os outros fizeram», reiterando que a co-incineração é «a decisão política mais fundamentada cientificamente». Sócrates considera «confrangedor» que um líder político que se prepara para disputar eleições «ceda com facilidade a demagogias» e não tenha coragem para tomar as decisões necessárias «para resolver um dos mais graves problemas do país». Também o deputado Renato Sampaio entendeu as palavras de Durão como provas de «pura demagogia», «cedência negativa aos populismos locais» e «falta de seriedade política». Isto «uma vez que o PSD e Durão Barroso votaram na lei que o Governo está a cumprir».
Comentário: Nesta altura, a aplicação ou não da co-incineração nas cimenteiras estava totalmente politizada. O problema já deixara de ser técnico para passar a ser uma questiúncula política na caça aos votos. Durão Barroso tinha declarado e prometido que um futuro governo social-democrata abandonaria o processo. Isto queria dizer que os resíduos perigosos combustíveis não seriam queimados nas cimenteiras, mas sim em incineradoras dedicadas a esta função.
25/01/2002 em O Independente, Rosário Abreu Lima:
Título: PSD volta à incineração dedicada.
Durão Barroso prometeu que, com um governo seu, não haverá co-incineração. Mas o programa de governo do PSD continua a definir, tal como em 1995 e 1999, a “incineração dedicada” para destruir os resíduos perigosos. E se o candidato a primeiro-ministro garantiu que Setúbal e Souselas estão fora do seu mapa para instalar unidades de queima, a verdade é que o processo será reaberto e, inevitavelmente, provocará a contestação popular onde recair a escolha.
«A localização é um processo que se abre de novo e vai provocar reacções negativas das populações, como provocou em Coimbra e Setúbal. Mas é a prova da coragem de o PSD anunciar agora o que pretende fazer», assegura José Eduardo Martins, o porta-voz social-democrata para as questões do Ambiente.
A luta sem tréguas travada até hoje entre o ministro da tutela e a oposição prende-se apenas com a forma como o Governo geriu o processo. Ou seja, «não só a co-incineração não é a solução para o problema, como devia ter sido a última a ser posta em prática: o PS nada fez em seis anos para tratar os resíduos industriais perigosos. A co-incineração foi decidida corajosamente há quatro anos, mas até hoje não passou de uma proposta».
Na lógica do PSD, há muito para fazer em matéria de resíduos industriais antes de instalar unidades de queima. Apostando em levarem por diante toda a legislação apresentada e reprovada pelo PS, na Assembleia da República, os social-democratas querem, antes de mais, fazer uma base de dados dos resíduos industriais perigosos. O passo seguinte é «estimular, com obrigatoriedade legal, a regeneração e reciclagem de alguns resíduos perigosos», como, por exemplo, os óleos industriais. Mas «há sempre uma percentagem pequena para a queima». E quando a questão se puser, o PSD não vai inovar nesta matéria.
A “incineração dedicada” continua a constar do programa de governo (em 1995, a polémica escolha para a sua instalação recaiu sobre Estarreja). Contudo, as associações ambientalistas já fizeram saber que voltarão à luta quando e se o PSD avançar com a “incineração dedicada”. Intenção manifestada por Rui Berkemeier, da Quercus, em declarações à revista Visão: «Se a co-incineração era má, a incineração é um desastre. Uma vez instalada, tem de ser utilizada ao máximo, para justificar o investimento de 20 ou 30 milhões de contos». Eduardo Martins contra-ataca, garantindo: «No que toca à saúde pública, o PSD não conta tostões. É mentira que a incineradora custe 20 ou 30 milhões. Há boas unidades por menos de metade desse valor.»
Comentário: Trata-se do desenvolvimento da notícia anterior com uma citação do deputado José Eduardo Martins, o porta-voz social-democrata para as questões do Ambiente, e que será o futuro secretário de Estado do Ambiente dos ministros Isaltino de Morais e Amílcar Theias. Nesta altura, o PSD ainda se mantém aderente à incineração dedicada, afirmando que esta continua a constar do programa do governo, embora os ambientalistas da Quercus sejam contra a medida. Como se verificará mais tarde, o governo acaba por ceder ao desejo da Quercus.
22/04/2002 no JN:
Título: Adiados testes em Souselas.
Ontem, a Comissão Científica Independente (CCI) considerou difícil a hipótese de que os testes da co-incineração, na cimenteira de Souselas, se realizassem na próxima semana, enquanto a Comissão de Luta contra o processo duvidaria mesmo que se chegassem a concretizar. Inicialmente marcados para Março último, os testes foram entretanto adiados para o período entre 16 e 22 de Abril, tendo a CCI justificado o atraso com “motivos técnicos”, invocados pela Cimpor, na transformação do forno nº3 da cimenteira localizada na vila de Souselas, em Coimbra.
Casimiro Pio, da CCI, afirmou ontem, segundo a Agência Lusa, que a estrutura aguarda ainda que a Cimpor lhe apresente uma nova proposta para a realização dos testes, a fim de, sobre ela, dar um parecer científico, o que deverá fazer com que os testes “dificilmente se realizem até dia 21”. Para João Gabriel Silva, da Comissão de Luta contra a Co-incineração, as perspectivas da CCI realizar os testes “são muito reduzidas”, devido ao início de funções do novo governo.
Comentário: Com o novo governo era de prever o final da CCI e da co-incineração.
22/04/2002 no JN:
Título: Isaltino suspende co-incineração
O ministro das Cidades, do Ordenamento do Território e do Ambiente, Isaltino Morais, suspendeu ontem o processo de co-incineração de resíduos industriais perigosos. Segundo o despacho, o ministro assenta esta sua decisão na “protecção da saúde” e no direito a “um ambiente de vida humana, sadio e ecologicamente equilibrado “ que a Constituição da República defende nos artigos 64º e 66º.
No início de uma das últimas reuniões da Comissão Científica Independente (CCI), Formosinho Simões afirmou que a suspensão é um processo “lesivo” para Portugal. «A médio e longo prazo trará graves consequências ambientais, que poderíamos evitar», frisou o presidente da CCI. «Qualquer que seja a alternativa a escolher por este governo para os resíduos industriais perigosos será sempre um passo atrás», reiterou, ainda, Formosinho Simões, em conversa com os jornalistas. Por seu turno, o ex-ministro do Ambiente, José Sócrates, afirmou que o recuo do Governo em relação à co-incineração é uma “irresponsabilidade chocante” e uma “cedência à demagogia e preconceitos.”
Comentário: A suspensão da co-incineração sem apresentação de uma alternativa válida é preocupante. Sabendo-se que a co-incineração era uma alternativa pontual à incineração dedicada estranhamos que esta solução não tenha sido posta pelo referido ministro. Como veremos, no seguimento do processo, já havia uma solução que, de momento, estava escondida.
06/02/2003 no JN:
Título: Resíduos industriais já têm destino.
O governo já decidiu o destino final a dar aos resíduos industriais perigosos (RIP). Abandonando em definitivo a co-incineração, o Executivo optou pela constituição de um ou dois centros integrados de redução, reciclagem e tratamento, a entregar aos privados. Em cada uma daquelas unidades, os RIP serão sujeitos a várias formas de tratamento, que não a queima (incineração dedicada ou co-incineração), para poderem ser depositados em aterro. A decisão do ministério do Ambiente será anunciada, hoje, aos deputados.
Comentário: Temos assim a seguinte situação: em 6 de Fevereiro de 2003, o Governo já tinha decidido pela construção dos centros de tratamento dos resíduos industriais perigosos a entregar aos privados. Mas só em 16 de Maio de 2003, com 5 meses de atraso, é que o Ministério do Ambiente apresenta os resultados de um trabalho de inventariado, encomendado a cinco universidades .
07/02/2003 no JN:
Título: Ambiente lança concurso para construção de aterros
Isaltino Morais anunciou nova política de tratamento de resíduos sólidos
O ministro das Cidades, Ordenamento e Ambiente, Isaltino Morais, aproveitou ontem a interpelação do PS sobre tratamento de resíduos industriais perigosos para anunciar, no parlamento, a abertura de um concurso para a atribuição de licenças de exploração de novos aterros, com unidades de pré-tratamento, os “Centros Integrados de Redução,Reutilização e Reciclagem de Resíduos Industriais”.
O referido concurso, segundo o próprio garantiu, será aberto ainda durante este semestre. O ministro revelou, também, que as futuras licenças de gestão desses centros terão como condição obrigatória «a construção imediata por parte dos concessionários de estações de armazenamento temporário dos resíduos industriais perigosos». O secretário de Estado, José Eduardo Martins, afirmou em resposta a João Teixeira Lopes, do BE, que, parte dos resíduos que não possam ser tratados será exportada.
O ministro fez aqueles anúncios depois do deputado socialista José Sócrates ter aberto o debate, acusando o governo de “torpor” em relação às políticas ambientais, designadamente no que diz respeito ao tratamento de resíduos industriais perigosos. «Dez meses depois de haver revogado a decisão de promover a co-incineração, deixando o país sem solução, o governo apresenta-se, hoje, aqui, no esplendor da irresponsabilidade: a alternativa que arranjou para a co-incineração é a exportação de resíduos. Não conseguindo resolver o problema, o governo decide exportá-lo», afirmou.
Exportar o problema
O debate andou em torno da solução que o actual Governo defende para o tratamento dos resíduos industriais perigosos e das comparações entre o actual titular da pasta do Ambiente e o anterior, José Sócrates. Para Sócrates, é um erro a exportação de resíduos, «porque retira competitividade à indústria portuguesa, oferecendo-lhe uma solução cara e incerta».
Sem falar de “exportação“ o ministro, na sua intervenção inicial, preferiu falar em “solução global integrada”. Trata-se de uma estratégia, disse, fundamentada em seis princípios: conhecer em permanência a quantidade e qualidade dos resíduos produzidos; garantir, tendencialmente, a auto-suficiência do país na gestão dos resíduos; minimizar a sua produção na origem; promover a instalação de unidades de reciclagem e reutilização por fileira; utilizar tecnologias integradas e complementares direccionadas para a reutilização e reciclagem; promover o passivo ambiental.
Onde está o inventário?
O governante foi questionado por Heloisa Apolónia, do Partido Ecologista “Os Verdes”, sobre o inventário dos resíduos, uma vez que a apresentação dos resultados do inventariado estava prevista para Dezembro, sem contudo ter sido divulgada dentro desse prazo. O novo limite temporal é agora o final do mês de Fevereiro. O facto desse levantamento não ter chegado ainda à Assembleia motivou também as interrogações do deputado comunista Honório Novo, que destacou a falta de conhecimento que o Parlamento tem sobre as soluções em concreto. «Quantos aterros? Onde? Com que critérios? Que garantias de fiabilidade do sistema?», indagou. O debate terminou com a mesma resposta do ministro: até final deste mês, estará concluído o “estudo rigoroso” sobre os resíduos industriais produzidos em Portugal.
Comentário: Estas declarações mostram que a deliberação do ministro não esperou pelos resultados do inventariado dos resíduos encomendado às universidades, pelo que foi um trabalho desnecessário que dizem ter custado três milhões de euros.
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