Da mentira da arte

"A arte é uma mentira". Vista desse jeito, meio de relance e sem maiores compromissos ou preocupações de origem, bem poderia parecer que esta frase tivesse sido proferida por uma pessoa que não gosta de quadros, de música ou de literatura. Poderíamos ainda ir mais longe e imaginar alguém tentando provar a quase óbvia inutilidade da manifestação artística. Afinal, pra que pintar quadros, compor músicas ou escrever livros, se o mundo precisa mesmo é de cereais, tecidos e máquinas a vapor? Sim, a arte não raras vezes sofre desta profunda indagação referente à sua função, e na maior parte das vezes anuncia, de peito aberto - seja em seu produto final, seja em seu processo de criação -, aquilo que de mais subjetivo existe na alma humana. A arte é uma mentira, tanto quanto o é o universo dos sonhos e do indizível.
Mas o caso é que a afirmativa pertence a Pablo Picasso. Ele mesmo, aquele pintor doido que em suas telas mobilizava as várias angulações da imagem, e que se tornou, por esta razão e pela originalidade de concepção, o personagem central de um movimento da vanguarda européia nas artes plásticas, o Cubismo. O pintor espanhol, porém, não parou por aí, e a afirmativa, em sua inteireza, é - "A arte é uma mentira que revela a verdade".
Revelar uma verdade não deve ser pouca coisa, e talvez seja neste segundo passo da afirmativa que Picasso tenha acertado em cheio um outro componente da função artística. Na tela Guernica, uma de suas mais conhecidas obras, as imagens da Guerra Civil Espanhola, pintadas lá no final dos anos de 1930 sob o olho onisciente do artista, têm a possibilidade de esmiuçar os vários ângulos da natureza sanguinolenta que reside no poder de Estado e nas instituições, bem como no infindo palco da guerra humana. Guernica sim é uma mentira em tinta e tela, mas que revela a verdade, aquela, que vai além do fato em si mesmo. A verdade da tela perdura, estações afora, na universalidade e na reflexão posterior da cultura. E já não mais a imagem da guerra vem permeada pelo medo imediato dos fuzis e das bombas - vem sim permeada pelo alto risco, insólito e sombrio, que reside em todo organismo social. É aí que o gênio do artista faz com que seu produto, a arte, seja o pivô da memória, da consciência coletiva e da possibilidade de fazer uma pergunta - uma profunda pergunta.
E, pois, qual será essa pergunta, e onde ela reside? Positivamente, mais que discursar sobre a verdade, a mentira e a alma humana, e muito mais que fornecer uma cena ou um dado subjetivo ou empírico, a arte possibilita uma reflexão insubstituível. Ela forja um descolamento do homem daquele lugar pequeno e circunscrito à realidade trivial, e faz com que este mesmo homem, de posse das imagens da criação artística, se pergunte, em sério - o mundo é assim? Lá, em Guernica, é assim que o mundo é, referido na verdade profunda de uma mentira aparente, e só aparente.


Referências:
http://planeta.terra.com.br/arte/marcossosa/16.htm

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Inserido em: 2004-06-27 Última actualização: 1999-11-29

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